segunda-feira, 15 de junho de 2009

Graça Domingueira

Manhã cinza
abafada pela tensão
de anunciado crespúsculo
no ar

Sepulcral anestesia
de plateia
parca em entendimento

Verborreia pastoral
mais seca que fogo
Estival

Graça transformada
num martelar sem sentido
no cravo
e na ferradura
da imensa longanimidade
que me parece abandonar
pelos instantes
em que me agito na cadeira
e sussuro antídotos ao meu
ouvido interlocutor

Deixo descair o semblante
contemplativo
do infeliz espectáculo

Não devo ser a única
a fazê-lo
Sei que não sou a única

O palavroso "interpelador"
de massas
lá consegue arrancar-lhes surdo
Ámen

à incongruência
da mensagem
inspirada só pela metade

e revelada a corações
que se recusam
a abandonar à loucura
da divina contradição
de múltiplos caminhos
riquíssimos em equações
inacabadas
e hipóteses
permanentemente interminadas
e abertas ao movimento
de uma Graça por si
desconhecida

mentes que se agarram com contumácia
à estulta tradição

porque foi sempre assim
que nos contaram que era

ou devia ser

e não existe tal coisa como
a Evolução

pelo menos
não para nós
"santos do Senhor"


«Por graça somos salvos,
não por obras; não provem da gente,
é dom de Deus»

No entanto imediatamente
se rebate a anterior ideia
reafirmando-se o desejo de tudo fazer
para agradar
ao Pai

Qual síndroma infantil
de quem em sua insegurança
desconhece a inépcia
das actividades
para fazerem escorrer
tão incomensurável amor
e prazer
do coração de quem
contra todas as estatísticas
o pensou
lhe planeou a existência
e a forma

lhe fundou no universo
material aparição


Ai de quem pense de forma
desigual à nossa
de quem vislumbre cenários diferentes
de quem deixe de visitar os nossos
sepulcros domingueiros
a abarrotar de ossadas
das vítimas dos nossos disparates
pessoais
envoltos em manto de santidade

talhada à nossa imagem
conforme a semelhança
da nossa empobrecida imaginação

inaceitável à razão
e vã para o verdadeiro
conhecimento

Vítimas da nossa pueril (in)sanidade
da nossa (in)sensibilidade auditiva
da nossa (in)sapiente visão
da nossa (in)capacidade de arrazoamento

da nossa (in)disponibilidade
para mudar de rumo e de verdade
que designamos de (falta de)
arrependimento

porquanto Deus será certamente
coerente ser
que pinta quadros culturalmente
todos idênticos
em cinzentos e sensaborões matizes
que nada significam para os transeuntes


A caminho por certo estão da perdição...
Pobres diabos!
Encomendêmo-los à misericórdia divina
já que a nossa não existe

Os outros...
Os outros é que são religiosos


Voltamos para casa ainda mais doentes
do que eramos então
Mais ocos de sentido

Mas só até pronunciarmos uns aos outros
promessas
palavras vivas

de Amor e Alegria
no Espírito

que tão estranhamente teima
em dominar-nos o ser
e o querer ser

6 comentários:

Danny disse...

Uma apreciação e constatação profunda do que é o "ir à igreja" como clube social, sem que seja para crescer espiritualmente e ter comunhão com o Senhor e com os irmãos da fé.
A igreja deve estar em constante evolução e renovação através da Sagrada Escritura e não ser uma tradição que não aceita outras formas de pensar e adorar Deus. É triste que haja salões carregados de ossadas de orgulho pessoal "envoltos em mantos de santidade" como referes.
Embora seja triste esta tua análise, não posso deixar de te dar os parabéns pela forma exímia como conseguiste expressar em palavras uma situação que se verifica nos meandros eclesiais.
És brilhante!

Rute J. disse...

Obrigada pelos comentários que tão gentilmente deixaste, Danny :)

O problema é que ter comunhão com alguém, como dizes, implica sempre conhecer o coração e a mente dessa pessoa tanto quanto é possível e isso requer, de facto, algum trabalho e disponibilidade, além de representar uma experiência verdadeiramente aterradora para a maioria dos mortais... Como tal, é mais simples viver-se do ajuntamento massificado ou descaracterizado, onde o indivíduo é "absorvido", tornando-se invisível, juntamente com tudo aquilo que contem de mais precioso dentro de si, à excepção da superficial evidência dos respectivos "talentos" e "dons", que normalmente são o que menos interessa, já que se referem mais vezes ao que as pessoas fazem do que à sua real essência. E, desta maneira, se vai dando lugar ao entretenimento de hostes, a tribalismos, i.e., a coisa nenhuma. Às tantas são justamente os "profissionais" que mais vezes dão a cara, os que mais invisíveis e solitários se sentem em cima do "palco", já que ninguém ainda lhes descobriu verdadeiramente o coração e não podem existir relacionamentos de aliança sem coração, como se sabe... Família em que não te conheçam pelo nome e pelo que és, não é a tua. "Mentores" que não valorizem o tesouro que trazes dentro de ti, não merecem a tua atenção.

Dizem que é suposto ser Cristo o centro da adoração e do culto, agora, tantas vezes, transformado em celebração. É verdade. Mas, também não é menos verdade que Cristo sou eu, és tu e tantos outros indivíduos por este mundo fora... Igreja? Claro que sim! És tu, sou eu e, de vez em quando, quando Deus assim permite e a gente deixa, são as alianças que, enraizadas nos nossos corações, manifestam os Seus verdadeiros filhos à Criação!... O resto são "histórias da carochinha" ;)

Beijinhos.

Sip of Glory disse...

Fico muito triste quando vejo a Igreja do meu Senhor transformar-se em "Clube" ou a promover Eventos que que em nada contribuem para o desenvolvimento do "Novo Homem". (Ajuntamentos da carne e não do espírito). E fico muito mais triste quando pessoas que amo pensam e sentem do mesmo modo que eu. Preferia estar só na minha perversa e insana opinião. Que Deus possa dar entendimento aos líderes das Igrejas para que este triste espectáculo tenha fim. Já chega de mentiras e de falsas expectativas. Eu por mim quero acabar com a "Era Gospel". Jesus merece muito mais.

Beijos

Rute J. disse...

Nem tudo é, no entanto, sombrio e triste...
Há laivos de esperança no fim do texto, à mão de semear de qualquer espírito em que haja centelha de Vida e réstia em forma de respiração.

Abram-se, pois, os sepulcros.

Beijos.

rui miguel duarte disse...

Rute, li este texto com atenção e felicito-te pela acre ironia do mesmo, a propósito do que é viver igreja, viver comunidade de Cristo. Sim, esse é o retrato do que se observa com frequência, do que não menos raramente se vive e experimenta. Cristianismo a saca-rolhas, por hábito, por tradição que amiúde ocupam o lugar do Espírito, que sopra não se sabe donde e nos impele não se sabe para onde. Como humanos e falíveis podemos cair nisso, e caímos.
Mas fico feliz pela esperança, que é a nossa marca. Ainda que ocupe uma pequena percentagem dos versos do texto, vem com a força própria da esperança, ainda que seja somente uma pequena centelha, brilha. E vem no fim, e é o fim que mais retemos do que lemos e ouvimos.
O que dizes num dos teus teus comentários lembrou-me o que Ele me disse há tempos, e que (com infidelidade) verter nas teclas do computador (alguns fragmentos já na minha página), a propósito do encontro de Jacob com Deus em Betel: revelações pessoais de Deus a indivíduos pessoais, que fundamentam a celebração de outras tantas alianças. Isso faz a Igreja, a Casa de Deus.

Rute J. disse...

Obrigada por teres passado, Rui. Bênçãos!